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Antropologia do Consumo: Origem e contextualização histórica

Esta postagem é parte de uma seção dedicada à disciplina referida no título ministrada por três períodos no curso de Publicidade nas Faculdades Integradas Hélio Alonso (FACHA), entre 2020 e 2021.

O conteúdo está dividido nos seguintes tópicos:


Linha cronológica do consumo na visão das ciências sociais

A atenção das Ciências Sociais para o assunto remonta ao século XIX, com a expressão 'bias produtivista' (bias é uma palavra inglesa que pode significar preferência, viés, tendência, mas também preconceito), corrente no campo dos estudos de consumo no âmbito da tradição acadêmica que prevaleceu até a década de 1980, quandoo foco estava voltado para o lado da produção, em vez do da demanda.

Atualmente, a academia valoriza a expressão sistemas de consumo, utilizada para designar não só a produção, distribuição e circulação de bens e serviços, mas também todo o processo de acesso a esses diferentes usos conceituais. Assim, temos como exemplo o estudo do sistema alimentar, o qual envolve as diversas categorias da alimentação como: classificação, técnicas de preparo, práticas de abastecimento, rituais familiares, lógica e os valores referentes à refeição e alimentos.

Para o antropólogo Daniel Miller, professor na University College London (UCL), no Reino Unido, o conceito de 'bias produtivista' era compreensível no século XIX, e até quase meados do século XX, mas após a II Guerra Mundial, não seria mais possível ignorar as transformações que ocorreram na relação das sociedades com o consumo.

Estudiosos contemporâneos apontam que até antes da Grande Guerra, a sociedade de consumo recebeu, por parte da academia, uma abordagem conservadora, uma vez que o pensamento predominante na época se restringia à concepção de que o trabalho e a produção dele advinda eram moralmente valorosos. Seja como, for não há dúvidas sobre um aspecto: enquanto que na Revolução Industrial, foi o homem-trabalhador o personagem central, para a sociedade de consumo, o personagem principal é a mulher-consumidora, com grande contribuição dos estudos feministas sobre o tema, particularmente sobre os processos de decisão no âmbito familiar e sobre a importância do trabalho doméstico e seu valor econômico e social para a humanidade.

Para muitos teóricos no assunto, as raízes desse predomínio do estudo sobre o consumo e os aspectos do 'bias produtivista' (voltado à vida material) são decorrentes da abordagem moralista influenciada pela religião, seja Católica ou Protestante. Até fins do século XX, grandes pensadores como Adam Smith, Karl Marx e Hannah Arendt consideravam o consumo como algo ameaçador, desestabilizador e problemático.

A questão da temperança no consumo já existia na Grécia. Sócrates e Platão já debatiam as necessidades humanas básicas e os males advindos do consumo de bens supérfluos pelos cidadãos que levavam uma vida luxuosa. Para os filósofos gregos da antiguidade, o consumo além do razoável afetava o caráter do homem, deixando-o fraco e covarde diante da dor. Sendo assim, esses indivíduos eram incapazes de defender a pólis e, consequentemente, eram considerados maus exemplos.

Os pensadores romanos pouco se diferenciaram dos gregos em suas concepções sobre os malefícios do que percebiam como consumo excessivo e sua potencial interferência na afeminação dos homens. Na visão deles, os consumistas da época eram sujeitos de caráter corrompido. Além disso, era dever do Estado zelar para que isso não ocorresse. O Império Romano chegou a regulamentar o consumo para os seus cidadãos, sendo que a elite política e econômica sempre dava um jeito de burlar impunemente tais leis.

Esse pensamento perdurou por toda a Idade Média, agravado pela tese filosófica de Santo Agostinho a partir da qual o consumo passou a ser considerado mais do que um vício, um pecado. Com o século XVII, inicia-se uma série de debates que apontavam para uma moralização do consumo e do luxo. Os mercantilistas já haviam detectado a estreita relação entre produção e consumo, conscientes das implicações que ela trazia para o crescimento econômico e a riqueza das nações. Prevalecia a visão de que os países ricos eram aqueles que conseguiam praticar o entesouramento pedras e metais preciosos dentro das fronteiras nacionais. O crescimento do consumo não era visto como uma oportunidade para a expansão de negócios ou para o aumento da produção de mercadorias, mas apenas um mal necessário associado ao crescimento populacional. Os objetos de luxo eram taxados como produtos estrangeiros exóticos, representando um perigo para o balanço de pagamentos de qualquer país.

* Psicologia do desenvolvimento. A importância da fala na criança. Postagem do dia 15 de junho de 2017 no grupo FACHA Comunicação & Psicologia, no Facebook.

Quase no final do século XVII, emerge uma tese que alegava ser o consumo o principal objetivo da produção. Concebida pelo filósofo escocês Adam Smith (1723-1790), a afirmação foi considerada uma heresia para a época, mas no início do século XVIII, pouco depois de sua morte, alguns pensadores, influenciados por Smith, começaram trabalhar a relação entre comércio, consumo e prosperidade das nações.

No século XIX ganha forma a sociedade do consumo na França (influência da Revolução de 1789), mas o luxo e a vontade de consumir ainda despertavam preocupações nos moralistas e políticos da época. Existia um conflito entre o desejo de consumir e a culpa causada por esse desejo. Por um lado, a ciência buscava justificar a necessidade do consumo, equiparando o progresso moral ao material, baseando-se na teoria evolucionista; por outro, a religião assinalava que o caminho para a elevação espiritual começava pela austeridade, condenando comportamentos consumistas como pecaminosos.

O século XX manteve a tradição do pensamento sobre o consumo anteriormente descrita. O sociólogo Émile Durkheim (1858-1917) identificou o consumismo como uma anomia social ameaçadora, devido à sua tendência individualista, a qual só poderia ser neutralizada pelo potencial agregador da divisão social do trabalho, encontrado no setor produtivo. No início do século passado, a maioria dos cientistas sociais (entre eles os pensadores da Escola de Frankfurt Erich Fromm, Theodor Adorno e Walter Benjamin) temia de alguma forma o potencial desagregador do individualismo com o qual o consumo está associado. Dessa forma, o interesse sociológico no consumo sempre esteve ligado à crítica social.

* Byung-Chul Han: “Hoje o indivíduo se explora e acredita que isso é realização”. Postagem do dia 13 de fevereiro de 2018 no grupo FACHA Comunicação & Psicologia, no Facebook.

Exercício 2: Você acredita que esse repúdio intelectual e moral sobre o consumo revela uma visão ingênua e idealizada? Justifique a sua opinião em até 30 linhas.

O consumo na contemporaneidade
A questão do consumo é tão complexa, que acabamos desenvolvendo sofisticados critérios para legitimá-lo e justificá-lo. Tão sofisticados que nos passam despercebidos no dia a dia. Alguns desses fatores culturais, como a ideia das necessidades básicas e supérfluas da pirâmide de Abraham Maslow, muito utilizada nos cursos de administração, marketing e psicologia, foram esmiuçados em pesquisas e artigos científicos, gerando uma extensa produção acadêmica.

Destacamos os critérios básico e supérfluo em Maslow, onde a hierarquia de necessidades estabelecida por ele vai do mínimo necessário para a vida da espécie humana (abrigo, reprodução, alimentação...) até aquelas ligadas aos desejos espirituais, como o prazer estético ou o êxtase religioso.

Exercício 3: Após pesquisas compare as necessidades do psicólogo Abraham Maslow com as do psicanalista Erich Fromm. Qual você destacaria como a mais pertinente? Justifique em até 25 linhas.

Do ponto de vista cultural, as necessidades básicas são aquelas consideradas legítimas e cujo consumo não traz a culpa, pois são moralmente justificadas. As supérfluas são dispensáveis e estão associadas ao desejo e ao excesso, sendo assim, é ilegítimo consumi-las. Mesmo na sociedade de hoje, na qual a noção de liberdade de escolha é um valor enaltecido, existe uma necessidade de justificar a compra de alguma forma, para que o bem adquirido ganhe legitimidade diante do ambiente social que o comprador frequenta. Em outras palavras, o supérfluo deve ser convertido em um atributo moral e socialmente aceitável. Nesse sentido, são desenvolvidos discursos do tipo: ‘se comprar agora, posso fazer economia no futuro, pois o preço está bom e pode encarecer’; ou ‘foi uma ótima oportunidade, pois estava mesmo precisando’; ou ‘ainda vou aproveitar a ocasião para trocar por algo mais novo’. É o teorema de Daniel Miller: economizar gastando.

Quando o repertório acima se esgota, o consumista recorre ao discurso do ‘eu mereço’, seja ‘porque trabalho muito’; ou porque ‘há muito tempo não compro nada para mim, só para os outros’; ‘a vida não pode ser trabalho, tem que ter prazer’; ‘se for esperar sobrar dinheiro, não compro nunca’. Os argumentos acima demonstram a compensação na qual o trabalho, dedicação, oportunidade e senso de economia, entre outros valores morais, podem neutralizar a falta de legitimidade da aquisição supérflua. Além de justificar moralmente o consumo, também hierarquizamos os diferentes bens de forma que alguns sejam mais bem vistos que outros. Por exemplo: costuma ser menos repreensível consumir CDs e livros do que joias ou bolsas de grife, mesmo levando em conta que existem gêneros de música e de literatura mais ou menos valorizados culturalmente. No primeiro caso somos intelectuais, já no segundo somos fúteis e vazios.

No mundo de hoje, consumo segue sendo associado a ideias negativas. Dele derivam vários termos como ‘consumismo’, ‘devastação’, e adjetivos como ‘consumista’, ‘perdulário’, ‘esnobe’, ‘novo-rico’, ‘emergente’, que são estratégias de acusação ou de autoflagelação. O ato de consumir é responsabilizado por uma série de situações que vão desde a perda da autenticidade nas relações sociais e de autocontrole na hora de estabelecer limites individuais até a destruição do meio ambiente e o avanço do aquecimento global. Pode ocasionar a destruição de estilos de vida tradicionais, estimulando um materialismo exacerbado, e culminando na degeneração de nossa sociedade contemporânea, que é próspera, mas desigual na distribuição da renda, comprometida com um estilo de vida insustentável em termos ecológicos, inviabilizando, assim, a vida humana no planeta Terra.

A visão que prevalece é que o ato de consumir perturba a vida social, onde a liberdade de escolha e o prazer dos indivíduos em adquirir bens e serviços não essenciais são vistos como encorajamento ao individualismo e ao egoísmo, geralmente considerados prejudiciais às normas coletivas da sociedade.

Assim como o senso comum define que nem tudo é só positivo, também não há o que seja apenas negativo. O consumo tem seus aspectos nocivos e problemáticos, mas que não são apenas seus. É importante destacar que parte dessas afirmações sobre a sociedade de consumo está baseada em análises e pesquisas que consideram apenas os estilos de vida e as práticas de consumo de alguns recortes (grupos e estratos sociais, nações). Desse modo, tais conclusões não devem ser aplicadas indistintamente em todas as realidades da sociedade contemporânea.

* Reflexões sobre o mundo do consumo. Diálogos com Zygmunt Bauman. Postagem do dia 29 de maio de 2016 no grupo FACHA Comunicação & Psicologia, no Facebook.

* Observatório da Imprensa entrevista o sociólogo Zygmunt Bauman. Postagem do dia 23 de outubro de 2015 no grupo FACHA Comunicação & Psicologia, no Facebook.

Exercício 4: Como seria a organização social e econômica de uma nação que adotasse o consumo básico para todos os seus cidadãos e a quem caberia defini-la?